“Well-run libraries are filled with people because what a good library offers cannot be easily found elsewhere: an indoor public space in which you do not have to buy anything in order to stay.” Zadie Smith

domingo, 21 de julho de 2013

"A COMPANHIA DO BIBLIOTECÁRIO"


[foto tirada daqui]
É uma carrinha cheia de letras, aquela. Letras, palavras, frases inteiras. Em cima daquelas quatro rodas, curva contra curva, circulam exclamações, metáforas, passeiam poemas e prosas, desliza literatura nacional e estrangeira. Ao volante vai Nuno Marçal, 37 anos, o bibliotecário itinerante que orgulhosamente conduz a cultura às terras de Proença-a-Nova, onde ela jamais chegaria se não fosse ele.
«Ora então muito boa tarde! Passou bem ou quê?» O cumprimento corta o silêncio do campo, parece ajudar a derreter o granizo preso nas folhas, e ilumina o sorriso de Lúcia Fernandes, 56 anos. «Cá se vai andando, devagarinho. Venho entregar este livro e buscar outro. Tem aí coisas boas?» Lúcia trabalhou toda a vida na agricultura até há sete anos, quando um acidente lhe roubou a mobilidade de um braço. Foi então que se pôs a ler. «Gosto muito. Acho que abre a mente às pessoas. Posso estar triste, em baixo, mas quando começo a ler fico renovada.»
Nuno Marçal conduz a Bibliomóvel há cinco anos e não podia imaginar vida melhor. Leva palavras a quem tem sede delas, cria sedes em quem se julgava saciado, e ainda tem o privilégio de preencher algumas (muitas) solidões. Como a do senhor João, que levou meses a abeirar-se da carrinha com livros, desconfiado, não fosse agora ter-se inventado para aí alguma lei que obrigasse a ler, e ele que mal sabia juntar duas letras. Nuno nunca o apressou. Via-o na esquina, à espreita, e compreendeu que o ancião precisava de espaço e de tempo para se acostumar à ideia. Um dia, o senhor João aproximou-se, pediu ajuda para entrar, espreitou os livros, as revistas, mirou aquele homem condutor de palavras de alto a baixo e saiu, quase sem dizer palavra. Mas voltou. E, de 15 em 15 dias, quando Nuno Marçal estaciona na aldeia, o senhor João é o primeiro a subir para a carrinha. Não lê, é certo. Mas conversa. Sobre o tempo, sobre a vida, sobre a solidão. Ganhou uma companhia, um amigo. Deixou de estar só.
O bibliotecário sabe que não há assim tantos leitores compulsivos como isso, nestas aldeias perdidas do distrito de Castelo Branco. Muitos nem sabem ler ou escrever porque a vida os obrigou a trabalhar a terra desde meninos. Mas também tem a noção de que o seu papel vai muito além da entrega e recolha de exemplares. Sabe que é uma espécie de assistente social, psicólogo e padre, um verdadeiro três-em-um: «Estaciono a carrinha ora nas aldeias ora em centros de dia, escolas e jardins-de-infância. É difícil dizer do que gosto mais. Gosto muito das aldeias, mas os centros de dia também têm sido uma experiência extraordinária. No princípio era eu a contar histórias. Mas agora são sobretudo os idosos que me contam histórias a mim. Histórias, cantares, ditados. Lendas, mezinhas caseiras... de tudo um pouco. E é tal a riqueza do que me contam, que comecei a levar um gravador. Gostava de poder compilar tudo num livro: a sabedoria dos mais velhos de Proença-a-Nova. Gente com memória! Têm-me ensinado tanto...»
Nas aldeias, quando encontra um leitor ávido pela sua chegada, Nuno sente outro tipo de gáudio. Sente que cumpre verdadeiramente a sua missão. E recorda dois grandes leitores solitários, que morreram com poucos dias de diferença, e que o marcaram talvez para sempre: «Não se conheciam. Era uma mulher e um homem que viviam a cinco quilómetros um do outro. Leitores compulsivos. Ela era uma sexagenária com muito mundo. Tinha tido uma vida incrível, cheia de aventuras. Depois, tinha vindo parar a uma aldeia aqui do concelho, cheia de gente que nunca foi a lado nenhum, mentalidades diametralmente opostas. A visita da carrinha, de 15 em 15 dias, era a sua alegria. Por um lado porque se abastecia de livros e, por outro, porque era a sua oportunidade de conversar com alguém. As vizinhas só sabiam falar de doenças, de galinhas, de ração, de couves. Essa senhora até na morte chocou toda a vizinhança. Não foi enterrada, deu o corpo à ciência. Ficou tudo doido.»
O outro leitor fervoroso também era muito vivido, em Lisboa e Cabo Verde, tinha várias mãos cheias de façanhas para contar, muito álcool à mistura: «Depois, decidiu vir para a aldeia tomar conta da mãe e ser pastor. Um dia, dei com ele sentado debaixo de uma árvore, com quatro cabrinhas à volta, a ler O Processo, do Kafka. Nunca mais me hei de esquecer daquela imagem.»
Nuno Marçal também nunca se esqueceu, nem esquecerá, do fascínio que sentia sempre que, na sua infância, via passar a carrinha da Gulbenkian, que levava livros às gentes de Castelo Branco, onde nasceu: «Via aquela carrinha e ficava a sonhar. Que bonito que devia ser, andar de terra em terra, a levar livros às pessoas. E olhe... quis o destino que fosse essa a minha vida!»
[via DN]
NOTA: anterior post apagado por falta de legibilidade

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