A humanidade nunca leu tanto
quanto hoje. Por um lado, a era digital faz com que os textos estejam mais
disseminados. De outro, a população mundial é cada vez mais alfabetizada. Nesse
cenário, descrito pelo historiador francês Roger Chartier, é papel da escola
ensinar aos jovens que existem diferentes formas de ler para diferentes
necessidades. E, se as salas de aula devem incorporar a presença de
computadores, internet e tablets como ferramentas, também é fundamental que os
professores continuem a trabalhar a leitura de livros clássicos. "Não
porque eles são 'clássicos', mas porque talvez melhor do que
outros textos, ajudam a pensar sobre o mundo, natural ou social, a compreender
as relações com os outros, a fazer as perguntas essenciais da existência e a
desenvolver uma crítica às instituições, às informações, às autoridades",
defende Chartier. Profundamente respeitado e estudado no Brasil e no mundo,
Chartier é professor da Universidade da Pensilvânia e do Collège de France,
diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess), uma
das mais importantes faculdades de história do mundo, e é considerado
atualmente um dos principais pensadores no que se refere à história do livro e
dos hábitos sociais de leitura. Em entrevista à repórter Carmen Guerreiro, o
historiador francês fala sobre a importância das diferentes plataformas
digitais para a leitura no mundo de hoje, e também frisa sua tese de que o
texto muda de acordo com o meio no qual foi publicado - porque mudam também a
formatação, a maneira de folhear ou fazer referências, a atenção que se exige.
Além disso, o texto está sujeito ao próprio contexto de quem o lê. Para ele,
classe social, idade, sexo, religião e outras características são fundamentais
para determinar que tipo de leitura uma pessoa fará de um texto. Chartier
lembra, no entanto, que na escola a leitura não pode ser reduzida a
"exigências utilitárias". "Os livros devem também fazer sonhar,
divertir, permitir a reflexão, desenvolver o espírito crítico", afirma.
[...]
O
senhor defende que a revolução do livro eletrônico é talvez mais importante do
que a descoberta de Gutenberg. Porquê?
Johannes Gutenberg inventou uma
nova técnica para a reprodução de texto, acrescentando ou substituindo a
imprensa para a cópia do manuscrito. Mas o livro antes ou depois de Gutenberg
manteve suas mesmas estruturas fundamentais: as folhas dobradas, contidas em
uma encadernação ou capa, e que distribui o texto em folhas e páginas. Este
tipo de livro, que nomeamos códex (ou códice), estabeleceu-se no Ocidente entre
os séculos 2 e 4 d.C., quando substituiu os rolos, que foram os livros dos
gregos e romanos. Com o códice permitiu-se fazer ações antes impossíveis, como
escrever lendo, fazer a paginação, um índice definido, folhear um livro,
comparar facilmente diferentes passagens. Mas esta primeira revolução do livro
não alterou a técnica de reprodução do texto, ainda atribuída somente à cópia
do manuscrito. A revolução do e-book é uma revolução técnica (como a invenção
da imprensa), uma revolução da plataforma da escrita (como a invenção do códex)
e uma revolução na leitura, que desafia as categorias e práticas que definem a
relação com a escrita desde o século 18.
Diz-se que os jovens de hoje são
desinteressados pela leitura. Como a escola pode reverter esse quadro,
levando em conta que precisa trabalhar os "clássicos" da literatura?
É
seguro dizer que o diagnóstico que afirma a rejeição da leitura entre os jovens
deve ser corrigido, tanto pelo sucesso de certas obras ou séries como pelo fato
de que telas de computador são telas de texto. A humanidade nunca leu tanto
quanto agora. Porque os textos estão em toda parte, porque a alfabetização se
tornou necessária devido ao comércio e à administração, porque o mundo digital
é basicamente um mundo por escrito. A questão é, portanto, a das práticas que
não são mais da tradição literária ou de ensino. Daí o papel da escola. Ela
deve ensinar as habilidades necessárias para nossos futuros cidadãos ou
consumidores que serão confrontados com a escrita. Deve mostrar que existem
diferentes maneiras de ler para diferentes necessidades. Também deve organizar
a ordem dos discursos e, assim, manter o lugar dos "clássicos", não
porque eles são "clássicos", mas porque, com outros, mas talvez
melhor do que outros textos, ajudam a pensar sobre o mundo, natural ou social,
a compreender as relações com os outros, a fazer as perguntas essenciais da
existência e a desenvolver uma crítica às instituições, às informações, às
autoridades.
A forma de dar aula vai mudar por conta das mudanças às quais
os livros foram submetidos com o advento da plataforma eletrônica?
Não sei.
O que eu sei é que as escolas devem ensinar todas as formas da cultura escrita
(manuscrita, impressa, eletrônica), conscientizar os alunos de suas diferenças,
e os acostumar a usar uma ou outra forma de escrever, para navegar no mundo dos
textos como se faz em uma floresta. Sei também que os objetos eletrônicos
inventados todos os dias representam um avanço técnico, mas também são
mercadorias, que têm um custo abusivo para muitos e que geram lucros (nem
sempre justificáveis por sua utilidade). É também uma lição que as escolas
devem ensinar em uma crítica sobre a sociedade de consumo. Mas, é claro, um dos
deveres das políticas públicas é tornar essas novas oportunidades acessíveis e
familiares. Uma última coisa: nas palavras de Emilia Ferreiro, a presença de
computadores ou de tablets em sala de aula não resolve por si só os problemas
de aprendizagem e transmissão de conhecimentos - e, ao mesmo tempo, pode trazer
a "tentação" de reduzir ou excluir o papel essencial dos professores.
Ler entrevista completa aqui
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